O apito do mestre de obras mal ecoa e lá se vão eles. Homens e mulheres, alguns com anos de chão de fábrica, outros recém-chegados, escalando andaimes, telhados, postes. Lidar com as alturas, para muitos, é rotina. Para outros, um desafio diário, um flerte constante com o perigo. No Brasil, essa dança vertical tem uma trilha sonora regulatória: a Norma Regulamentadora 35, a famosa NR35. E no centro dessa orquestra, ou desse caos, dependendo de onde você olha, está ele: o instrutor NR35. Mas será que a presença desse profissional garante, de fato, que ninguém “caia no esquecimento” – ou, pior, do alto?
A Realidade do Trabalho em Altura: O Perigo Espreita
Não precisa ser especialista para entender que trabalho em altura não é para amadores. Basta olhar para cima em qualquer obra, em qualquer poste de energia, e a cena se repete. Ganhando a vida lá no alto, em condições nem sempre ideais. É um cenário que, no Brasil, ainda rende números que deveriam nos fazer sentar e pensar, mas que muitas vezes viram só mais uma estatística fria em alguma pasta.
Os acidentes envolvendo quedas de altura são uma chaga aberta na segurança do trabalho. De acordo com dados do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho, mantido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), as quedas são, ano após ano, uma das principais causas de acidentes fatais e graves. Não é brincadeira. O buraco, como se diz, é bem mais embaixo, ou no caso, lá em cima.
“Olha, a gente… a gente tenta fazer tudo certinho, sabe? Mas no dia a dia, a pressa, a falta de material bom, tudo complica”, desabafa José Carlos, 52 anos, encarregado de obra há mais de 20. “Às vezes, penso que é milagre não acontecer mais coisa. O curso ajuda, claro, mas na hora H, a coisa é diferente.” Uma confissão que ecoa o sentimento de muitos que vivem essa realidade.
NR35: Mais Que Papel, Uma Necessidade?
Foi para tentar frear essa sangria que a NR35 foi criada. A norma é clara: qualquer atividade executada acima de dois metros do nível inferior, onde haja risco de queda, exige medidas de proteção. E não é só colocar um cinto. A coisa é mais complexa, envolve planejamento, organização, execução e, claro, treinamento.
É aqui que a figura do instrutor NR35 entra em cena. Ele não é um mero repassador de slides. Deveria ser o guardião do conhecimento, aquele que transforma o emaranhado de regras e procedimentos em algo prático, que pode salvar uma vida. Ou seja, ele é a ponte entre a teoria da norma e a vida real no canteiro de obras, na torre de telecomunicações, em qualquer lugar perigoso.
Quais os Requisitos para ser um Instrutor NR35?
Não basta querer ensinar. Para ser um instrutor de NR35, a coisa tem que ser séria. A qualificação é essencial, afinal, a responsabilidade é gigante. Basicamente, os requisitos mínimos incluem:
- Experiência comprovada em trabalhos em altura. Não dá para ensinar o que não se viveu.
- Formação específica em segurança do trabalho ou área correlata. É preciso ter base técnica.
- Treinamento como instrutor, para aprender a metodologia de ensino, a didática. De nada adianta saber se não souber transmitir.
- Capacitação em Primeiros Socorros e Resgate em Altura. Porque, convenhamos, se a coisa apertar, é o instrutor quem deve dar o exemplo.
Parece bastante, não é? E é. Mas o mercado, esse bicho faminto, nem sempre olha com o mesmo rigor. “O problema é que tem muito ‘instrutor’ por aí que mal sabe amarrar um nó direito. Fez um cursinho de fim de semana e acha que está pronto para dar aula sobre salvar vidas”, pontua Ana Lúcia, engenheira de segurança do trabalho, com um tom de frustração que beira a resignação. Uma crítica dura, mas que merece ser ouvida.
A Formação Que Faz a Diferença (ou Não)?
A verdade é que a qualidade do treinamento de NR35 varia. E varia muito. Há cursos que são exemplares, com instrutores realmente capacitados, que mostram a importância de cada detalhe, cada equipamento, cada procedimento. Que fazem os alunos sentirem na pele o que é o trabalho em altura, os riscos, a responsabilidade.
Mas, por outro lado, existem aqueles que parecem mais um “tira-gosto” de segurança. Um check-list a ser cumprido, um certificado a ser impresso para a fiscalização. Nesses casos, o treinamento vira mero papel. E o conhecimento, que deveria ser a barreira contra o acidente, se esvai como areia pelos dedos.
Os Desafios Invisíveis da NR35 no Campo
A teoria é linda, a prática é outra conversa. Nas filas dos bancos e nas conversas de padaria, o assunto é um só: o dinheiro que parece encolher a cada dia. Nas empresas, a pressão por resultados, o corte de custos e a falta de uma cultura de segurança verdadeiramente enraizada, jogam contra a eficácia da NR35.
Não é incomum ver empresas que priorizam o “barato” em vez do “seguro”. Contratam o instrutor NR35 mais em conta, mesmo que a qualidade seja questionável. O importante é ter o certificado na mão quando a fiscalização bater à porta. É uma mentalidade perigosa, que coloca a vida humana em segundo plano em nome do lucro imediato. E aí, o acidente, se não é uma certeza, vira uma grande probabilidade.
O Fio da Navalha: Acidentes e a Falta de Treinamento Eficaz
Quando um acidente acontece, a primeira pergunta que se faz é: “Estava treinado? Tinha certificado de NR35?”. Muitas vezes, a resposta é sim. Mas ter o certificado e ter o treinamento eficaz são duas coisas completamente diferentes. A falta de reciclagem, a superficialidade do conteúdo, a ausência de uma prática real durante o curso, tudo isso contribui para que o trabalhador, mesmo “treinado”, continue exposto ao risco.
Os números de acidentes fatais em altura não mentem. Eles são um lembrete cruel de que algo não está funcionando como deveria. Vejamos algumas das causas mais comuns que, mesmo com a NR35 em vigor, ainda derrubam trabalhadores:
Causa do Acidente | Impacto na Segurança |
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Falta de Análise de Risco | Subestimação dos perigos, sem plano de ação. |
Equipamento de Proteção Individual (EPI) Inadequado ou Não Utilizado | Exposição direta ao risco de queda e lesões graves. |
Falta de Sinalização e Isolamento da Área | Risco para o próprio trabalhador e para terceiros. |
Treinamento Superficial ou Não Reciclado | Desconhecimento de procedimentos seguros e de emergência. |
Condições Climáticas Adversas Ignoradas | Instabilidade e riscos adicionais em alturas. |
É uma lista simples, mas que representa vidas, famílias, sonhos interrompidos. A pergunta, no fim das contas, sempre volta ao mesmo ponto: a NR35, com seus instrutores e procedimentos, está sendo levada a sério o suficiente? Ou é apenas mais uma etapa burocrática, um carimbo em um formulário, que pouco muda a realidade lá no alto?
A Pergunta Que Não Cala: A NR35 Protege de Verdade?
A Norma Regulamentadora 35 é, em essência, uma ferramenta poderosa. Uma legislação que, se aplicada com rigor e seriedade, tem o potencial de salvar incontáveis vidas. O instrutor NR35, por sua vez, é a peça-chave para que essa ferramenta seja usada de forma correta.
Mas, como em muitas coisas neste país, o papel e a prática vivem em dimensões diferentes. O ceticismo aqui não é por maldade, mas por observar a realidade. Enquanto a formação de instrutores for vista apenas como um nicho de mercado para alguns e o treinamento como uma mera formalidade para empresas, a sombra dos acidentes continuará pairando sobre quem se aventura nas alturas. É preciso mais do que um certificado. É preciso compromisso com a vida. E isso, meu caro leitor, começa muito antes de se colocar o primeiro cinto de segurança.