O Brasil é um canteiro de obras e um emaranhado de fios. Uma vastidão de telhados, andaimes e torres que se erguem a cada dia. E, com essa paisagem vertiginosa, vem uma verdade incômoda, brutal até: trabalhar lá em cima, nas alturas, é uma das atividades mais perigosas que existem. É por isso que, lá em 2012, o governo trouxe à baila a tal da Norma Regulamentadora 35, a famosa NR-35. Na teoria, um marco para a segurança. Na prática, bom, na prática a coisa é sempre mais embaixo.
Quem trabalha com jornalismo há 15 anos aprende a olhar com um pé atrás para qualquer “salvação” burocrática. A NR-35, para quem não conhece, é o conjunto de regras que obriga empresas e trabalhadores a garantir a segurança em qualquer atividade acima de dois metros de altura. Isso inclui desde o pedreiro no telhado até o eletricista no poste, passando pelo sujeito que limpa janelas de arranha-céus. A ideia é nobre: zero acidente, zero morte. Mas o que se vê por aí é um esforço hercúleo para cumprir a letra da lei sem, necessariamente, abraçar o espírito da coisa.
A verdade é que, no fim das contas, a NR-35 se tornou um divisor de águas. De um lado, as empresas sérias, que investem pesado em treinamento, equipamentos e cultura de segurança. Do outro, as que veem a norma como mais um custo, um pedaço de papel a ser assinado para não ter dor de cabeça com a fiscalização. E é aí que mora o perigo, o abismo entre o que é lei e o que é realidade no dia a dia da obra, da manutenção, de qualquer trabalho onde o chão está longe.
NR-35: O Que Diz o Papel e o Que Se Vê na Rua
Para o leigo, a NR-35 pode parecer mais um monte de burocracia. Mas, quando se coloca na ponta do lápis o que ela realmente exige, percebe-se a complexidade. Não é só colocar um cinto. A norma exige um planejamento prévio, a chamada Análise de Risco (AR) e a Permissão de Trabalho (PT), sistemas de proteção contra quedas (coletivos e individuais), treinamento constante e, essencialmente, a supervisão. Ah, a supervisão. Essa palavra que carrega um peso danado, especialmente quando se trata de vidas.
- Planejamento: Antes de qualquer subida, é preciso avaliar os riscos, as condições do local, o tipo de tarefa. Não é coisa para amador.
- Equipamentos de Proteção Individual (EPIs): Cinturões de segurança, talabartes, trava-quedas, capacetes. Tudo homologado, em bom estado e, pasme, usado corretamente. “A gente vê cada um que enrola o cinto no braço porque ‘atrapalha'”, desabafa um técnico de segurança que prefere não se identificar, “É um perrengue pra fiscalizar.”
- Capacitação: Não basta saber amarrar o cinto. É preciso entender os riscos, como montar um sistema de ancoragem, como agir em caso de emergência. O treinamento da NR-35 não é um curso qualquer; ele é a diferença entre voltar para casa ou não.
- Supervisão: E aqui chegamos ao ponto nevrálgico. A norma exige que haja um supervisor capaz de garantir que tudo o que foi planejado está sendo executado à risca. Esse sujeito é o olho da empresa, o guardião da vida do trabalhador. Uma responsabilidade que, muitas vezes, é subestimada.
O Supervisor NR-35: Herói ou Burocrata?
O tal “supervisor NR-35” não é um cargo específico, mas uma função crucial que pode ser exercida por diferentes profissionais: o encarregado, o mestre de obras, o técnico de segurança ou até um trabalhador mais experiente designado para a tarefa. Ele é o elo entre a teoria da norma e a prática do canteiro. É ele quem confere se o EPI está certo, se a linha de vida está segura, se o trabalhador treinado não está inventando moda lá em cima.
Imagine a cena: um supervisor precisa garantir a segurança de cinco, dez, às vezes vinte trabalhadores em diferentes pontos de uma obra, cada um com sua tarefa e seu risco. A pressão é enorme. “É um pega pra capar todo dia”, conta Marcos, encarregado de uma construtora de médio porte. “A gente fala, explica, mas tem uns que, sei lá, acham que são de ferro. É um risco que a gente não pode correr, mas tem que estar em cima o tempo todo, senão dá ruim.”
O desafio do supervisor não é só técnico; é humano. É lidar com a pressa, com a desatenção, com a velha mania brasileira de “dar um jeitinho”. É explicar, mais uma vez, que o “jeitinho” em altura pode ser fatal. É brigar, se for preciso, para que a vida venha antes da produtividade a qualquer custo. Uma batalha que, para ser justa, ele não deveria travar sozinho.
A Triste Realidade: Números e Consequências
Apesar da NR-35, os acidentes em altura continuam sendo uma realidade dura no Brasil. Dados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, mantido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), mostram que quedas de altura são uma das principais causas de acidentes fatais no país. E isso é só o que é notificado. O “buraco é mais embaixo”, como diz o ditado, quando se considera a subnotificação.
Veja alguns dados aproximados (lembrando que a variação anual pode ser significativa, mas a tendência se mantém):
Acidentes por Queda em Altura (Anual – Estimativa) | Fatalidades (Estimativa Anual) | Setores de Risco |
---|---|---|
Milhares de ocorrências | Centenas | Construção Civil, Energia, Telecomunicações |
Os custos de um acidente são astronômicos, e não me refiro apenas aos diretos, como tratamentos médicos e indenizações. Há o custo social, o impacto na família, a perda de um trabalhador para a economia, o abalo psicológico na equipe. Sem falar nas multas e processos que a empresa pode enfrentar. E ainda assim, alguns insistem em ignorar as regras. É um cálculo que simplesmente não fecha.
Onde a Fiscalização Dói
A fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) é a principal ferramenta para garantir o cumprimento da NR-35. As multas não são brincadeira e podem chegar a valores exorbitantes, dependendo do porte da empresa e da gravidade da infração. Em casos extremos, a interdição do local de trabalho é uma realidade. E quando há acidente fatal, a história muda de figura, envolvendo a polícia, o Ministério Público e a responsabilidade criminal dos envolvidos.
“A gente não quer multar, a gente quer que a regra seja cumprida”, disse um fiscal do MTE em uma conversa informal. “Mas se não doer no bolso, às vezes o pessoal não aprende. É triste, mas é a realidade.”
Um Longe Caminho pela Segurança
A NR-35, apesar de suas falhas na implementação e dos desafios diários, é uma ferramenta vital. Ela forçou empresas a olhar para a segurança em altura com outros olhos, a investir em equipamentos e treinamento. Mas a batalha pela segurança de verdade, aquela que se internaliza e vira cultura, ainda está longe de ser vencida. Exige vigilância constante, tanto dos supervisores quanto dos próprios trabalhadores, que precisam entender que o maior interessado em sua segurança é ele mesmo.
O trabalho em altura continuará sendo parte essencial da nossa economia. Construiremos mais prédios, faremos mais manutenções, estenderemos mais redes. O que precisamos é que essa evolução venha acompanhada de uma responsabilidade à altura. E para isso, o supervisor, o trabalhador, o empresário e o governo precisam, de uma vez por todas, falar a mesma língua: a da vida. Porque, no fim das contas, nenhum telhado, nenhuma torre, nenhuma fachada vale uma vida humana. Essa é a verdade que insiste em bater à porta, dia após dia, com ou sem norma.